Quanto mais prazer, mais dor
Enquanto você lê este artigo centenas de milhares de jovens Brasil afora consomem algum benzodiazepínico, opióide ou tipo de anfetamina para inibir suas dores da alma e do corpo. Com apoio e até incentivo dos pais, consomem drogas como oxicodona, morfina, hidromorfona e clonazepam com a mesma naturalidade de quem devora dois pães de queijo no café da tarde.
A utilização de polifármacos cresceu tanto nos últimos anos que hoje em dia é normal adolescentes rotulados como ansiosos, entediados e disfóricos conversarem na escola com naturalidade sobre quais medicações utilizam contra seus alegados desconfortos emocionais. Na outra ponta, profissionais da área de saúde, não necessariamente saúde mental, diagnosticam diariamente – jovens em especial – com TDAH, depressão e ansiedade generalizada. Virou rotina ginecos, proctos, gastros e outros especialistas receitarem ansiolíticos e antidepressivos. Num desses casos um rapaz foi diagnosticado com ansiedade generalizada por um dermatologista, que lhe receitou sertralina. Dois dias depois descobriu que tinha um cálculo renal de estruvita. Receitar remédio psiquiátrico agora é fashion. O que quase nunca se discute nesses consultórios é quais padrões comportamentais, alimentares, fisiológicos e mentais devem ser adotados/modificados a fim de evitar o consumo desses coquetéis adictivos e promover mais qualidade de vida.
A busca pela farmacoterapia como recurso para refutar o convívio com dores emocionais comuns de qualquer ser humano virou moda, mas não por acaso. Basta refletir sobre “a quem interessa” a cultura da fragilização metacognitiva da humanidade. Amparada por diretrizes ideológicas políticas, governos e o apoio despudorado da grande mídia e das Big Techs, a indústria farmacêutica, disparada a mais endinheirada do planeta, conta ainda com o engajamento de instituições médicas e profissionais de saúde para engordar sua opulência. Cabe todo mundo no budget.
Para qualquer brasileiro não é necessário o menor esforço de memória para responder quantas farmácias abriram no bairro nos últimos 6 meses. Coincidência, teoria conspiratória ou apenas o óbvio das relações de interesse? A propósito, evite viajar por períodos longos pois o risco de encontrar uma drogaria no lugar de sua casa é grande. A abundância de farmácias entulhadas pelas esquinas do Brasil faz coro como a fartura de aplicativos, remédios, comidas, celulares, notícias, comportamentos e cigarros eletrônicos utilizados como forma de gerar prazer para substituir quaisquer desconfortos emocionais; os mesmos (desconfortos) que subsidiam a construção moral e cognitiva de qualquer indivíduo que enseje sucesso na vida. Uma sociedade débil, insegura e dependente é sonho e projeto dos donos do mundo – as grandes gestoras de ativos e investimentos: Black Rock, Vanguard Group, Fidelity, State Street e Morgan Stanley. Você bate numa porta e um homem de bigode lhe vende um sanduíche repleto de química; bate na porta ao lado e o mesmo homem lhe vende o remédio para sanar o mal-estar causado pelo sanduíche. Fragilizar e adoentar são objetivos lucrativos.
Somos animais sociais, mas passamos a nos ver apenas como sociais. Ignoramos que carregamos milhões de anos de evolução adaptativa. Apesar da atmosfera cada vez mais hostil e enganosa do mundo que habitamos, ainda temos recursos poderosos. A política oportunista aliada à grande imprensa faz um esforço descomunal no cultivo da fragilização humana por meio da responsabilização de tudo que é possível, do bullying ao direito da liberdade de expressão, como causa circunstancial do sofrimento do indivíduo, quando a única verdade é que cabe apenas a cada um a decisão de como significar o que lhe acontece e principalmente como se sentir com relação a isso. Dois dos ensinamentos básicos de Nietzche, o “aquilo que não me mata me fortalece” e “não existem fatos, apenas interpretações”, foram gramscistamente substituídos pelo “eu não sabia de nada” e “a culpa é deles”. Infelizmente os acionistas majoritários da Terra vêm logrando êxito em suas narrativas artificiosas justificadas com o humanismo de vitrine. Se algumas décadas atrás os tempos difíceis criavam homens fortes, os tempos atuais criam apenas bonecas frágeis, entediadas e ansiosas porque o iFood demorou para entregar o lanche. “E agora, quem poderá nos defender?”. Não, não é o Chapolin Colorado, são os mesmos que desenvolveram o projeto do homem frágil, doente, superficial, ansioso e dependente. Afinal, gente saudável física e mentalmente não compra remédio. O resultado pulsa no seio das famílias contemporâneas, na degradação psicossocial da sociedade e no crescente domínio dos fármacos.
Os pais modernos caíram numa espécie de teia ideológica que, com sucesso, culminou num culto ao excesso de proteção que destroça a resiliência e a autonomia emocional de seus filhos. Ao protege-los das adversidades com tamanho esforço acreditando que fazem o melhor por eles, só conseguem com que tenham cada vez mais medo delas. Em qualquer espectro biológico, de peixes a plantas, o excesso de proteção sempre gerou fragilidade. O peixe palhaço, por exemplo, coloca seus ovos em anêmonas tóxicas para que seus filhotes no futuro desenvolvam resistência ao veneno delas. No âmbito humano a proteção excessiva cria jovens que evitam a todo custo qualquer mínimo sofrimento. Sentimentos como tédio ou frustração se tornam um dilema existencial a ser eliminado com máxima urgência; um resfriado tem que ser remediado rapidamente; uma simples injeção é como a amputação da perna e o término de uma relação justifica o suicídio. Pais que aceitaram submissos o “eu não gosto disso” e o “eu não gosto de fazer aquilo” de seus filhos hoje investem caro em terapias e medicações psiquiátricas para tentar corrigir as consequências do coração de geléia e da educação de festim. A matemática dessa equação é bem mais evidente do que se imagina: quanto mais fuga da dor mais sensibilidade a ela, mais fragilidade, mais doença, mais remédio, mais tolerância química, mais lucro para as farmacêuticas e mais populismo.
A tresloucada tentativa de ofuscar dores físicas e emocionais por meio da produção artificial de dopamina via comportamentos e pelo consumo de ansiolíticos, antidepressivos e anfetaminas é apenas resultado de todo esse arcabouço sociocultural-político-comercial que estrategicamente utiliza uma espécie de culto à antinatureza, um descrer no trabalho paciente da evolução por milhões de anos para o aperfeiçoamento do cérebro de nossa espécie. Uma pequena fórmula para estimular a resistência desse órgão e ensiná-lo a contemplar o sabor da simplicidade seria aprender a lidar com os dilemas mundanos sem apelar para válvulas imediatistas artificiais – resistir, ter brio -, exercitar o “dizer não” a grandes tentações e enfrentar com resiliência negações e dores cotidianas comuns. Quem convive apenas com o prazer sem contato com sofrimentos naturais da vida acaba por não aceitar o mínimo desconforto e se torna uma inquilina de cristaleira condicionada ao eterno ciclo de revés do uso. Adestrar o cérebro ao convívio harmônico com dores físicas e emocionais é uma forma saudável de cultivar força e prazer.
Lembro do dia em que utilizava um maçarico culinário para finalizar uma pizza quando o gás começou a vazar. Uma imensa chama tomou conta de minha cozinha. Lancei o maçarico sobre a cuba da pia e abri a torneira, mas notei que o fogo aumentava, começando a atingir os móveis. Ainda havia o risco da lata esquentar e explodir. Meu filho de 2 anos dormia no quarto ao lado e minha esposa já corria para acordá-lo e sair de casa. Diante do aumento rápido das labaredas pensei por dois segundos o custo x benefício de tudo naquele momento e decidi entrar com as mãos dentro das chamas, desconectar o cilindro da pistola e estancar o fogo. Minha família entrava n0 elevador quando o princípio de incêndio cessou. Minhas mãos estavam vermelhas, completamente queimadas já formando bolhas. Ardiam como se ainda estivessem no fogo. Mas a paz que sentia era insubstituível. Faria tudo novamente. Com tudo mais calmo olhei para minha esposa, sorri e falei: pode cortar a pizza para mim? A dor deve ter durado semanas, mas sem despesas psíquicas. Uma infância dura, pobre, cheia dificuldades e perdas, e a prática do lema “treinamento difícil, combate fácil” foi essencial para enfrentar com equilíbrio os muitos desafios da vida.
O culto a fragilidade em todas as instâncias recebe muitas maquiagens. Das rotulagens, diagnósticos médicos e segregação humanista até a transformação de pets em imperadores, o objetivo é um só: induzir o indivíduo a sentimentos específicos, e assim, controlar suas decisões, em especial as comerciais e políticas. Um ardil gerador de sofrimento e vulnerabilidade em todos as esferas sociais. O resultado é a crescente debilidade através do clico ‘dor, consumo, prazer curto, revés do uso, mais dor, mais consumo, mais prazer curto e mais revés do uso’. A normatização e apologia ao emprego descomedido de drogas, fármacos, dispositivos e aparentes fontes de prazer para inibir dores naturais do exercício de viver é uma vitória de quem controla ativamente as engrenagens de alienação e domínio social por meio de uma instalação metacognitiva catastrófica para instituir uma humanidade pusilânime, doente e submissa. Na “Carta a Meneceu” escrita em 340 a.C, Epicuro disse que “nenhum prazer é em si um mal, porém, certas coisas capazes de engendrar prazeres trazem consigo maior número de males que de prazeres”. Se de um lado quanto mais prazer, mais dinheiro; do outro quanto mais prazer, mais dor. Sofrer é essencial para a felicidade.
Rodrigo Batalha é neurocientista, escritor e consultor